Encontrei esse excelente texto de Leda Ferreira no Blog das Blogueiras Feministas. Interessante e bastante denso. Para pensar e quebrar paradigmas.
Mulheres invisíveis
Ela andava pela rua junto com algumas amigas, quando de
repente começam a ouvir vozes, proferindo ofensas raciais e sexuais.
Era um grupo de homens e mulheres brancos, héteros e cissexuais, um dos
quais é defensor da supremacia branca, a ponto de portar em seu corpo
uma tatuagem da suástica nazista.
Palavras de baixo calão. Ouvir xingamentos é algo dolorido, e ela
passava por aquilo todos os dias. Não suportou ouvir tantos
despautérios. Tinha que reagir. Confrontou o grupo que agredia
verbalmente ela e suas amigas, dizendo que não toleraria preconceito. A
agressão verbal se tornou agressão física, e uma das mulheres a agrediu
com um copo de vidro, ferindo-a no rosto. A vítima tentou escapar, e já
havia chegado à esquina quando um dos agressores – Dean Schmitz, o
nazista, que já tinha histórico criminal de violência – tentou impedi-la
de escapar puxando-a pelo braço na direção dele. Ao fazer isso, a
tesoura que a vítima trazia para se defender – a realidade da sua vida a
motivou a tomar precauções para se proteger – entrou em seu peito, e
ele morreu. Quando a polícia apareceu, a vítima, que estava num ato de
legítima defesa, virou a ré, e acabou sendo a única pessoa presa. Foi
processada e sua liberdade lhe foi tirada.
Apesar das evidências de autodefesa que foram levantadas, e de que as
agressões verbais e físicas partiram do grupo de Schmitz, a corte se
recusou a levá-las em consideração. A voz da vítima foi abafada. Foi
enviada para uma prisão masculina, e até os remédios receitados para um
tratamento de saúde lhe foram retirados. Seus direitos foram totalmente
pisoteados.
Lendo esta história logo imaginamos um roteiro de um filme de
suspense, ou até mesmo um drama ocorrido no século 19. Não, essa
história não é ficcional, nem muito menos aconteceu num país que não
respeita a liberdade dos seus cidadãos. Isso aconteceu nos Estados
Unidos da América. Quando? Não, não foi no século 19, foi este ano, em
pleno século 21. Achou absurdo? Acha que as autoridades americanas
enlouqueceram? Como uma mulher pode ser vítima de agressões verbais
racistas e sexistas, seguidas de agressão física, e ser considerada
culpada por matar em auto defesa? E que idéia é essa de enviar uma
mulher para uma prisão masculina? Será que não passou pela cabeça das
autoridades que ela corre risco de vida em uma prisão masculina?
Toda essa história ocorreu com uma mulher chamada CeCe McDonald.
CeCe, na nossa sociedade, não é vista como uma mulher. E porque não é
vista? Simples: CeCe nasceu com um pênis, e na nossa sociedade pessoas
que nascem com pênis são automaticamente classificadas como homens. Os
genitais são considerados determinantes do gênero da pessoa. Ou seja,
CeCe é uma mulher transexual. Isso por si só já bastaria para expô-la a
todo tipo de preconceito de gênero, e transfobia. Não apenas isso, CeCe é
uma mulher transexual e negra, o que também a expõe a racismo.
Será que CeCe, por ter nascido com um pênis, não pode ser uma mulher?
Quem dita as regras? Quem disse que pessoas com vaginas são mulheres e
pessoas com pênis são homens? Por que são outras pessoas que escolhem
por nós a que gênero pertencemos, e não nós mesmos?
Ainda: mulheres com pênis não podem ter sua pauta de obtenção de diretos incluídos na luta feminista? Quem define isto?
Mulheres com pênis na nossa sociedade são tratadas como doentes
mentais. Doentes porque ao nascer não aceitaram o rótulo de gênero que
lhes foi imposto. Quem determina que pessoas que não se identificaram
com o rótulo de gênero que receberam ao nascer são doentes mentais? As
pessoas que aceitaram o rótulo de gênero que receberam no nascimento?
Por que essas pessoas deveriam ter o poder de fazer essa definição, e de
interferir na vida das pessoas transexuais desta forma? Porque essas
pessoas têm o poder de classificar mulheres com pênis como pessoas
anormais, e de negar a elas o reconhecimento de sua identidade de
gênero?
E você, que é feminista? Acha que estas mulheres são anormais? Acha
que estas mulheres devem ter os mesmos direitos que você tem? Acha que
você, uma mulher que nasceu com vagina, é mais mulher que uma mulher com
pênis? Acha que mulheres com pênis que sofrem injustiças devem ter
apoio de ativistas que lutem por seus direitos? Se sim, o que você está
fazendo?
CeCe McDonald é uma mulher, negra, e transexual, que desde sempre tem
sofrido preconceitos raciais, como tantas outras pessoas negras, e
desde sempre tem sofrido preconceitos de gênero, como tantas outras
pessoas transexuais. Ao sofrer agressões verbais e físicas e reagir em
auto defesa, viu o Estado, que deveria estar a favor dela enquanto
cidadã, corroborar os preconceitos sociais, raciais e sexuais ao
condená-la – por ter sobrevivido – a quatro anos de assédio sexual numa
prisão masculina, não só por parte de presidiários, como também de
funcionários, pois um Estado que pune uma vítima para inocentar o homem
branco, hétero e cissexual de seu racismo e preconceito, certamente vai
fechar os olhos para abusos cometidos pelos funcionários dos presídios.
Você, mulher feminista, que nasceu com uma vagina, acha que essa
história não tem nada a ver com você? Que as demandas das mulheres
transexuais não podem fazer parte das pautas do seu feminismo? Que as
mulheres transexuais não merecem que você lute por elas? Até quando vai
fechar os olhos para as mulheres cujo corpo não é o mesmo que o seu?
Nota: No site http://supportcece.wordpress.com,
é possível acompanhar notícias sobre CeCe e o blog pessoal dela, e
também obter informações sobre como ajudar financeiramente, enviar
cartas, mensagens de apoio, livros e revistas para ela. Leia também o post sobre o caso de CeCe no site http://transfeminismo.com/, que possui mais referências em idioma estrangeiro sobre o tema.
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